Pressionado por uma megainvestigação que engloba praticamente todos os estados norte-americanos, com exceção apenas de Califórnia e Alabama, o Google tenta desfazer a imagem de predador digital, como passou a ser conhecida a empresa do Vale do Silício suspeita de práticas desleais de concorrência em negócios de publicidade digital. 

Em postagem em seu blog, na quarta-feira (11), a companhia afirmou que compete no setor de propaganda online com “muitas outras empresas”. Citou Adobe, Amazon e Facebook, entre outras: “O setor de tecnologia de anúncios está lotado e competitivo”, diz o texto, assinado pela vice-presidente, Sissie Hsiao.

A postagem pode parecer apenas uma reação direta a uma reportagem da agência de notícias Reuters, publicada dias antes, na qual executivos de publicidade apontam táticas com as quais o Google sufoca os rivais. Mas, para os críticos, a mensagem é bem mais do que uma simples resposta a um artigo da imprensa: trata-se de uma tentativa de desviar a atenção da opinião pública, no momento em que as entranhas de seu negócio estão sob escrutínio em diferentes níveis nos Estados Unidos e na Europa. 

A investigação aberta por 50 procuradores estaduais norte-americanos busca saber se a empresa usou vantagem indevida para dominar o mercado de anúncios digitais, ferindo leis que regem a concorrência. Em nível federal, o Google é investigado por conduta anticompetitiva pelo Departamento de Justiça americano e pela Federal Trade Commission (FTC), órgão responsável por zelar pelo cumprimento da legislação antitruste.

Esse é um dos lados do cerco à gigante. O outro diz respeito à violação da privacidade de usuários. Na Europa, o Google foi multado pela Comissão Antitruste da União Europeia em 1,49 bilhão de euros por forçar empresas a anunciarem somente por intermédio do AdSense, sistema que coloca anúncios relevantes nos sites. Segundo o órgão, a prática “nega a outras empresas a possibilidade de competir e inovar”.

 Argumento do Google seria duvidoso

O Google afirmar que compete com “muitas outras empresas” é uma meia verdade. Há vários players que vendem propaganda digital no mercado, mas essas companhias não chegam perto de ameaçar a posição dominante de Google e Facebook, o chamado duopólio. Ambas abocanharam no ano passado 57,7% da receita publicitária digital nos Estados Unidos. Amazon ficou no distante terceiro lugar, com 4,1%. Todas as outras empresas juntas respondem por 38,1% do bolo publicitário. Para o executivo de internet e consultor Rodrigo Borer, ex-Buscapé, o argumento do Google é duvidoso.

— É uma falácia, mas é uma falácia que precisam dizer neste momento. O Google é gigantesco, tem o Android (software), equipamentos de hardware, aplicativos, é dono do YouTube, tem vários serviços, mas é uma empresa de publicidade. O que paga a conta no final é o dinheiro de publicidade. Eles têm de proteger o core business a qualquer custo. Com ou sem ética, vão sempre proteger o negócio deles — afirma.

No mundo, o Google também domina o mercado de publicidade digital. Em 2019, pelas previsões da eMarketer, a empresa continuará sendo o maior vendedor de anúncios digitais do globo, respondendo por 31,1% dos gastos em anúncios, ou US$ 103,73 bilhões. O Facebook ficará em segundo lugar, com US$ 67,37 bilhões em receita líquida de anúncios, seguido pelo Alibaba, da China, com US$ 29,20 bilhões. Embora a Amazon venha crescendo no cenário, ainda é um participante menor no cenário mundial, com US$ 14,03 bilhões em receitas publicitárias.

No Brasil, não há dados precisos. A pesquisa Digital AdSpend 2019, do Interactive Advertising Bureau (IAB Brasil), entidade que reúne as principais empresas do mercado digital, entre veículos, agências e anunciantes mostra que 33% dos investimentos em mídia no Brasil vão para o online — o percentual aqui é inferior ao dos EUA (39%). Executivos de publicidade ouvidos pela reportagem e que preferem não se identificar afirmam que de 50% a 60% da verba publicitária vai para Google. O Facebook fica com entre 30% e 40%. Os demais players se engalfinham pela fatia restante.

— O Google tem uma força maior do que todos os concorrentes tanto em fixação de marca quanto em conversão de cliques, em venda. Tem 95% das buscas no Brasil, com índice de conversão alto. De que adianta ter 1 bilhão de sites fazendo propaganda se, na realidade, o Google concentra 80% da verba publicitária do Brasil — questiona o advogado Rodrigo Zingales, especialista em direito da concorrência.

Sócio diretor da Escala City, Martin Haag avalia uma redução lenta do domínio de Google no mercado publicitário:

— No início, essas plataformas ganharam participação muito grande porque tinham tecnologias que permeavam todos os sistemas de uso das máquinas, como a linguagem HTML. Depois, surgiram outras plataformas que começaram a se fechar e não ter a mesma entrada para o serviço de Google, como o Facebook. Hoje, há movimentos importantes, como Spotify, que não são na mesma linguagem. Tem muita gente usando internet sem dar visibilidade para o Google. Por esse lado, o Google não enxerga mais toda a internet como antes.

Por isso, segundo o executivo, a empresa deve começar apostar em outras plataformas.

— Eles têm mapas, sabem quanto tempo as pessoas ficam em um lugar. Tem o Waze (aplicativo de mobilidade), sabem qual o tempo de deslocamento dos usuários. Com local guides, começam a ter entendimento mais aprofundado, que não é por meio do conteúdo que está em website — diz Haag.

Atrair investimentos tem sido um desafio

O coordenador do MBA de Marketing e Negócios Digitais da Fundação Getulio Vargas (FGV), André Miceli, avalia a defesa do Google a partir de duas perspectivas: como um falso argumento, uma vez que a receita que a companhia conquista com anúncios digitais continua crescendo, e, ao mesmo tempo, como sinal de que a empresa já não reina absoluta no mercado.

— Há algum tempo, ela começou a dividir esse protagonismo com o Facebook. E agora também divide com a Microsoft, que tem no Linkedin ferramenta importante. Enfrenta Snapchat e Instagram e todo o ecossistema de marketing de influenciadores. Com esses últimos, apesar de não ser uma competição tecnológica, acaba competindo pela mesma receita. Quando o anunciante está montando o plano de mídia, ele precisa destinar uma verba que poderia ir para o site (Google) para outras mídias, outros canais e também para os influenciadores — avalia.

Entre vários outros pontos, a reportagem da Reuters explica que a exibição de resultados do buscador de Google, YouTube, Gmail e outros serviços da empresa impede a concorrência. A combinação de negócios deu ao Google um posicionamento sem precedentes em todas as facetas de como os anúncios terminam em sites e aplicativos para smartphones. Para conquistar grandes clientes do Google, empresas menores dizem que precisariam de dinheiro para diversificar seus negócios e desenvolver um conjunto completo de serviços. Mas atrair investimentos tem sido um desafio devido às ameaças do Google e ao aumento da regulamentação de privacidade de dados.

O Google afirma que existem milhares de empresas, grandes e pequenas, trabalhando juntas e competindo entre si para impulsionar a publicidade digital na web, cada uma com diferentes especialidades e tecnologias. Ao tentar revelar um mercado plural e competitivo, a companhia nomeou, como AT&T, Comcast, Oracle. Cita ainda empresas de capital aberto, como Telaria, Rubicon Project e The Trade Desk.

Mais uma vez, uma meia verdade. Os valores de mercado da Telaria (US$ 451,4 milhões), do Rubicon Project (US$ 508,7 milhões) e do The Trade Desk (US$ 9,8 bilhões) são pequenos em comparação aos US$ 854,1 bilhões do Google. Ou seja, mesmo que haja proliferação de participantes que atuam em diferentes áreas do ecossistema de tecnologia de anúncios digitais, o Google é um grande participante que se espraia por cada etapa do processo — da compra à venda. 

*zerohora