O jornalismo costuma ser considerado o primeiro rascunho da história, mas o que acontece quando esse rascunho é escrito em um software que se torna obsoleto?

O fim do suporte da Adobe para o Flash – seu outrora reprodutor de conteúdo multimídia onipresente – no ano passado significou que parte da cobertura de notícias dos ataques de 11 de Setembro e outros eventos importantes dos primeiros dias do jornalismo online não estão mais acessíveis.

Por exemplo, as coberturas de Washington Post e ABC News sobre os atentados, que estão arquivadas no Internet Archive, não funcionam mais. A cobertura online da CNN também foi impactada pelo fim do Flash.

Isso significa que o que já foi um infográfico interativo de como os aviões atingiram o World Trade Center ou uma história visualmente rica com alguns sobreviventes dos ataques são agora, na melhor das hipóteses, uma imagem estática ou, na pior, uma caixa cinza informando aos leitores que o “Adobe Flash player não é mais compatível”.

Dan Pacheco, professor de prática e presidente de inovação em jornalismo da Syracuse University’s Newhouse School, vivenciou o problema em primeira mão. Como produtor online do site do Post no final da década de 1990 e, posteriormente, da America Online (AOL), parte do trabalho que ele ajudou a construir desapareceu.

“Na verdade, trata-se do problema do que chamo de cemitério da internet. Tudo o que não é um pedaço de texto ou uma imagem plana está basicamente destinado a apodrecer e morrer quando novos métodos de entrega de conteúdo o substituir”, disse Pacheco.

“Eu sinto que a internet está apodrecendo em um ritmo ainda mais rápido, ironicamente, por causa da inovação. E isso não deveria acontecer.”

Ascensão e queda do Flash

O Adobe Flash desempenhou um papel crítico no desenvolvimento da Internet por ser a primeira ferramenta que facilitou a criação e visualização de animações, jogos e vídeos online em quase todos os navegadores e dispositivos.

Sucessos animados dos primórdios da Internet, como Charlie, o Unicórnio, Salad Fingers e o jogo Club Penguin, ganharam vida graças ao Flash.

O software também ajudou o jornalismo a evoluir para além dos jornais impressos, TV e rádio, inaugurando uma era de cobertura de notícias digitais que usava mapas interativos, visualizações de dados e outras novas formas de apresentar informações ao público.

“A facilidade de uso do Flash para criar visualizações interativas e conteúdo explorável moldou os primeiros experimentos com cobertura da web e, particularmente, serviu como uma prévia do que a adição de elementos dinâmicos a uma história poderia fornecer”, afirmou à CNN Anastasia Salter, professora da University of Central Florida e autora do livro “Flash: Construindo a Web Interativa”.

Parte da cobertura da ABC News sobre o 11 de Setembro, também feita em Flash, não funciona em dispositivos atuais
Parte da cobertura da ABC News sobre o 11 de Setembro, também feita em Flash, não funciona em dispositivos atuais / ABC News via CNN

Mas, apesar de permitir essas inovações, o Flash também foi controverso. Em 2010, o fundador da Apple, Steve Jobs, escreveu uma carta mordaz lamentando os problemas de segurança do Flash e o fato de ser um sistema proprietário subjacente a grande parte da Internet.

A recusa de Jobs em oferecer suporte a Flash em dispositivos iOS foi amplamente vista como o início de seu declínio. Um ano depois, a Adobe disse que não desenvolveria mais a ferramenta em dispositivos móveis.

Nos anos seguintes, o HTML5 – padrão da web mais aberto que permite aos desenvolvedores incorporar conteúdo diretamente em páginas da web – ganhou força e tornou o Flash menos útil.

O Flash foi cada vez mais ridicularizado e desprezado por apresentar bugs, vulnerabilidades de segurança, por ajudar a esgotar a bateria dos aparelhos e exigir um plug-in para ser usado.

Em 2017, a Adobe anunciou que acabaria com o Flash no final de 2020. Alguns sistemas operacionais e navegadores começaram a descontinuar o recurso mais cedo, e o dia oficial do “fim da vida” do software veio em 31 de dezembro de 2020, quando a Adobe terminou suporte para Flash e encorajou os usuários a desinstalá-lo porque ele não obteria mais atualizações de segurança.

Desde então, uma grande quantidade de conteúdo desenvolvido em Flash tornou-se inacessível na internet.

“Os preservacionistas da web soaram o alarme sobre o Flash há muito tempo”, disse Salter. Em alguns lugares da Internet, há esforços para preservar ou restaurar parte desse conteúdo.

O Internet Archive fez um esforço para recriar, salvar e exibir animações, jogos e outras mídias em Flash usando uma ferramenta de emulador chamada Ruffle. No entanto, esse processo pode ser difícil e não funcionará necessariamente para salvar todo o conteúdo construído em Flash.

“Infelizmente, é muito mais difícil do que gostaríamos [restaurar o conteúdo em Flash], principalmente porque o ‘Flash’ abrange gerações de trabalho e a complexidade do código da plataforma cresceu a cada iteração da linguagem de script da Adobe”, disse Salter.

“Não posso dizer que já vi alguma organização de notícias fazer o tipo de esforço concentrado que animações, jogos e comunidades de literatura eletrônica fazem para salvar essa história.”

Por sua vez, um porta-voz da Adobe disse em um comunicado: “A Adobe parou de oferecer suporte ao Flash Player a partir de 31 de dezembro de 2020. Infelizmente, essas páginas da web mais antigas não podem mais ser reproduzidas devido ao plug-in ter sido bloqueado de carregar no navegador”.

“Como todos os americanos, assistimos aos horríveis acontecimentos de 11 de Setembro e compreendemos o importante papel que o Flash desempenhou em ajudar as organizações de mídia a retratar e contar as histórias daquele dia trágico.”

Um software de propriedade da Samsung chamado Harman também fez parceria com a Adobe e pode ajudar as empresas a manter o conteúdo baseado em Flash funcionando.

Encontrando soluções

Algumas redações assumiram a responsabilidade de reconstruir o conteúdo em Flash. Para sua cobertura do 20º aniversário de 11 de setembro, o USA Today republicou alguns artigos de 2002 com horários do primeiro aniversário e que incluíam a recriação de alguns interativos baseados em Flash.

Apesar de alguns desses gráficos originais terem amplo conteúdo interativos, as equipes de gráficos do USA Today refizeram alguns com menos detalhes.

“Jogamos um pouco com a limitação… porque esta é uma maneira mais relaxada, mais solene e calma de ver as histórias”, disse Javier Zarracina, diretor gráfico do USA Today.

“Não estamos fazendo um fac-símile. Estamos dando uma olhada no que publicamos há 20 anos.”

Uma das histórias que o USA Today publicou em 2002 foi uma investigação sobre o sistema de elevadores do World Trade Center que incluiu um gráfico em Flash explicando como as pessoas ficaram presas dentro deles em 11 de setembro de 2001. A equipe do USA Today escolheu refazer esse gráfico e republicou no início desta semana.

USA Today arquivou muitos de seus arquivos interativos antigos, armazenando os originais em seus servidores.

Como alguns desses arquivos online foram convertidos para o jornal impresso, eles também salvaram os gráficos estáticos associados. Zarracina disse que conseguiu abrir alguns dos arquivos originalmente feitos no software FreeHand da Adobe em um pacote de software criativo mais recente chamado Affinity.

New York Times trouxe de volta alguns dos seus antigos interativos baseados em Flash usando o Ruffle, um emulador do Adobe Flash Player que faz parte de um projeto de código aberto, disse Jordan Cohen, diretor-executivo de comunicações do jornal.

“O Times se preocupa em preservar a história digital dos primeiros dias do jornalismo na web e, por meio de várias migrações de sites, garantimos a preservação das páginas da forma como foram publicadas originalmente em archive.nytimes.com“, escreveu Cohen por e-mail. “Esperamos que no futuro permitiremos que nossos leitores experimentem todos os nossos interativos em Flash.”

Mas nem toda organização de mídia é tão dedicada ao arquivamento.

“As empresas de notícias estão fazendo seu negócio neste exato minuto”, disse Pacheco, professor de Syracuse. “Não somos bibliotecas.”

Jason Tuohey, editor-gerente de digital do jornal The Boston Globe, disse em um comunicado que sua equipe planejava “reviver parte da cobertura de arquivo [para o aniversário de 11 de setembro], mas de muitas maneiras, o melhor material que podemos fornecer aos nossos leitores é jornalismo que coloca o aniversário em contexto e perspectiva, em vez de simplesmente repetir o que publicamos no passado”.

Kat Downs Mulder, editora-geral de digital do Post, disse em um comunicado que sua organização de notícias “fez um esforço concentrado para tornar a maioria dos artigos baseados em texto, imagens, gráficos e mapas acessíveis” em seus arquivos online, mas acrescentou que nem todo projeto foi reconstruído.

Os planos para reconstruir infográficos interativos baseados em Flash não foram detalhados.

Um problema sem fim

As limitações dos arquivos das organizações de notícias não começam nem terminam com o Flash.

Pacheco observou como seu antigo empregador, o Post, investiu esforços significativos no TikTok. Ele questionou se eles estavam preservando cada vídeo e se isso também acontecia com outros aplicativos sociais, incluindo o desaparecimento de conteúdo no Instagram e no Snapchat.

USA Today não está reconstruindo todas as experiências antigas para o consumidor de notícias de hoje. Mas as pessoas dentro da organização de notícias estão dando atenção especial a certos projetos.

Jim Sergent, gerente sênior de gráficos do USA Today, disse que seu colega Mitchell Thorson mantém os olhos na funcionalidade de mapa interativo dentro do vencedor do Pulitzer “The Wall”, sobre a fronteira EUA-México e a campanha do ex-presidente Donald Trump para construir uma parede.

“‘The Wall’ é um grande exemplo em que fizemos um trabalho inacreditável e percebemos: ‘Ok, sim. Queremos que isso esteja disponível por tanto tempo quanto for possível’”, disse Sergent.

CNN