No livro Planet Google: one Company’s Audacious Plan to Organize Everything We Know, o historiador Randall Stross traça a impressionante trajetória de Sergey Brin e Larry Page, os criadores do Google. Lá pelas tantas, o autor, colunista do The New York Times, conta que a empresa começou vendendo espaço publicitário para anunciantes que quisessem comprar certas palavras-chave: “carro”, “batata frita”, “armário”, “televisão”… Se alguém pesquisasse “TV”, por exemplo, apareceria como resultado a marca de um fabricante que havia pago para estar no topo da lista. Não muito diferente do que é hoje. Mas Brin e Page, revela Stross, não estavam satisfeitos. Eles acreditavam que esse modelo tornava os serviços de busca online “inerentemente inclinados  para os anunciantes e distantes das necessidades dos consumidores”.

O Google se mudou, do dormitório de Stanford, em Palo Alto, para o complexo de Mountain View. A plataforma como um todo se tornou diferente. Modificou a própria forma como usamos a internet. Mas, quem diria, 20 anos depois, a empresa é acusada exatamente por aquilo que Brin e Page condenavam: ser parcial – regular seus algoritmos de acordo com seus interesses, dar respostas pensando não nos usuários, mas em ganhar mais e mais dinheiro. E usar dessa voracidade para aniquilar concorrentes, abocanhar o mercado, garfar, junto com Facebook, 61% da publicidade digital global, segundo Global Advertising Report, criando um mundo só seu. Hoje, o Google não é só um site de buscas, mas um megaconglomerado, sob o guarda-chuva da Aplhabet, dona também do sistema operacional Android, dos aplicativos Google Maps e Waze, do navegador Chrome, do servidor de e-mail Gmail, da nuvem Google One, das lojas de apps, música e filmes Google Play, além da plataforma de vídeos YouTube, entre outros produtos. É a terceira empresa mais valiosa do mundo, atrás de Amazon e Apple, com valor estimado de US$ 309 bilhões.

Nos últimos anos, por meio de suas pesquisas temáticas, passou a exibir muitos resultados completos na sua própria página, sem que o usuário precise clicar nos links de resultados e sair do Google para ir até o site que produziu a informação original. Por exemplo: se você digitar no campo de busca “Previsão do tempo Porto Alegre”, não será redirecionado para os sites de empresas como Climatempo, ClicTempo, Accuweather ou Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (Cptec), mesmo que esses apareçam logo abaixo como resultado de sua pesquisa. A resposta que buscamos já surge no alto da mesma página – que é do Google.

Na tarde da última terça-feira (2), o próprio Google indicava: temperatura de 14ºC em Porto Alegre, tempo parcialmente encoberto, com 0% de chance de chuva – uma previsão que não foi feita pela plataforma, mas que era incorporada por ela para ser apresentada. Se você digitar “voo Nova York”, o resultado que aparecerá na tela será um serviço com informações de diferentes companhias aéreas, conexões a partir de onde você fez a pesquisa, tempo de viagem e preços. É possível fazer as comparações ali mesmo, sem sair do ambiente do Google ou migrar para um site de uma companhia aérea.

É exatamente essa facilidade, segundo os críticos, que compõe uma das faces mais nefastas do Google. Ao concentrar a resposta em seu próprio ambiente, não direcionando o usuário a quem de fato fornece a informação, a gigante da comunicação estaria, de forma ávida, destruindo outros mercados. Executivos de mídia, pesquisadores, autoridades americanas antitruste colocam na conta do Google o desaparecimento de buscadores concorrentes, como Altavista.

No Brasil, o apetite da empresa fez minguar a audiência de outros sites, como os comparadores de preços outrora populares Buscapé e Bondfaro. A busca temática do Google drena a publicidade de pequenas empresas de mídia. Os anunciantes acabam correndo para o Google (e também para o Facebook) porque é ali que bilhões de pessoas navegam, obtendo as informações que buscam e deixando seus dados, o que os torna passíveis de serem usados para marketing específico.

Seriam o ônus e o bônus do livre mercado? Não exatamente, porque as gigantes de tecnologia, pelas especificidades da área, assumem tamanho poder econômico que se transformam no próprio mercado.

– O desrespeito é inerente à maneira como essas plataformas fazem negócios – disse o holandês Wout van Wijk, diretor-executivo da News Media Europe, em entrevista publicada em GaúchaZH. – Elas vão até onde podem ir, até que uma autoridade as empurre de volta. Elas não fazem isso apenas em relação às leis antimonopólio, mas também, por exemplo, no campo da privacidade e da proteção de dados. 

Essa organização representa a tropa de infantaria de mais de 2,4 mil jornais, emissoras de TV, rádios e sites de notícias europeus que deflagraram uma guerra contra Google e Facebook na União Europeia (UE), pressionando as autoridades para implantarem controles mais rigorosos e mesmo punições. Se o Google é a porta de entrada da internet, o Facebook toma conta das relações estabelecidas na rede. O domínio dos dois gigantes levou os norte-americanos a chamarem as duas gigantes de tecnologia de duopólio (algo como um duplo monopólio, situação de mercado na qual um único vendedor oferece serviços para cobrir as necessidades de determinado setor).

– O domínio do Facebook não foi por acaso, mas resultado de estratégia de tirar do caminho quaisquer competidores, comprando-os, como foram os casos do Instagram e do WhatsApp, que pertencem à empresa fundada por Mark Zuckerberg. Hoje, para alguém substituir o Facebook, é complicado. Surge o Snapchat, as pessoas começam a migrar para lá, aí o Facebook vai lá e o compra. O mesmo com o Waze, adquirido pelo Google. E as autoridades antitruste não estão fazendo nada para impedir isso – reclama o advogado Rodrigo Zingales, especialista em direito da concorrência.

As acusações de práticas comerciais desleais são apenas um dos fronts deflagrados na UE e na Comissão Federal do Comércio (FTC), órgão de regulação da concorrência nos EUA. Há outros: sobre a gigante de Zuckerberg pesam a responsabilidade pelo vazamento de dados de milhões de usuários, suspeitas de fraude nas métricas de publicidade, propagação de notícias falsas, divulgação de conteúdos tóxicos como pedofilia compartilhados por terceiros – esta última, também por parte do YouTube, que pertence ao mesmo grupo que administra o Google. 

A FTC analisa o tratamento dirigido a crianças pela plataforma. A investigação foi iniciada depois de queixas de que o YouTube permite que conteúdo prejudicial e também adulto apareçam entre os resultados de buscas de vídeos infantis. No último dia 27, a empresa anunciou que está mudando sua política de recomendações e removeu milhares de filmagens que violavam suas políticas de terrorismo.  

Como não há concorrência – e porque nos acostumamos a navegar na internet tendo o Google como primeira página e as redes sociais como nosso principal passatempo –, o roteiro, a cada escândalo de violação de dados privados, pouco varia. Sentimos indignação, decepção e, por fim, resignação. Afinal, somos muito dependentes de Google e Facebook: “Nós nos distraíamos com ‘serviços gratuitos’ enquanto o direito à privacidade diminuía”, afirma uma pesquisa do Institute for Critical Infrastructure Technology (ICIT), centro especializado em cibersegurança com sede em Washington.

– Os usuários de redes sociais trocam seus direitos de privacidade e informações pelo acesso a plataformas que se dizem livres. Na realidade, Facebook, Twitter, Google e outros meios de comunicação massivos veiculam anúncios direcionados, coletam e trocam dados de internautas e lucram com detalhes pessoais e de atividades de seus usuários. Independentemente de as pessoas saberem ou não, nada é realmente gratuito: elas pagam por seu acesso às plataformas de mídia social com seus dados e, em alguns casos, com seus direitos de privacidade – diz Parham Eftekhari, diretor-executivo do centro.

As autoridades parecem ter acordado para os impactos negativos do duopólio no mercado, nas relações pessoais, na cultura e até na geopolítica, se pensarmos que há indícios de que fake newsespalhadas por redes sociais influenciaram decisões como o voto nas eleições norte-americanas e no referendo do Brexit, entre outras. Depois de depor por cinco horas, em abril de 2018, no Senado dos EUA, para explicar o vazamento de dados de 87 milhões de pessoas pela consultoria política Cambridge Analytica, Zuckerberg também está na mira da FTC e do Departamento de Justiça daquele país. Na Europa, já houve condenações de Google e Facebook. Também no Brasil as autoridades do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) olham com lupa as duas empresas.

Processos bilionários

O Buscapé, site de comparação de preços popular nos anos 2000, protagonizou uma das maiores batalhas jurídicas contra o Google no Brasil. Baseada em uma pesquisa interna no início da segunda década do século 21, a empresa brasileira suspeitou de que o site americano privilegiava, no topo da página, resultados do Google Shopping, seu próprio serviço de buscas temáticas, deixando os concorrentes mais abaixo. O Buscapé denunciou a concorrente no Cade, acusando o gigante que controla 97,5% do mercado de busca no Brasil, segundo a consultoria Statista, de exercer poder monopolista.

– A empresa construiu a noção de que era imparcial e que atuava sempre em benefício do usuário. No início, o Google era assim. Ao longo do tempo, passou a ser parcial e a atuar sempre em benefício de si próprio. Mas já tinha conquistado a confiança do internauta – afirma Rodrigo Borer, ex-CEO do Buscapé, executivo de internet e consultor.

Na Europa, houve processos semelhantes por práticas anticompetitivas. Em 2017, o Google foi notificado pela Comissão Europeia, órgão regulador do mercado da UE, em US$ 2,7 bilhões, sob acusação de abusar de seu domínio de buscas para favorecer seu comparador de preços, o Google Shopping. No ano passado, a companhia foi multada novamente, dessa vez em 4,34 bilhões de euros, por práticas ilegais envolvendo os aplicativos embutidos no Android, como Google Play e navegador Google Chrome, e encorajar fabricantes de smartphones a instalar o sistema operacional. Neste ano, a empresa foi multada de novo, agora em US$ 1,7 bilhão. Segundo a UE, aproveitou-se de sua posição dominante no mercado ao forçar os clientes do Google AdSense (sistema de publicidade para sites) a assinarem contratos declarando que não aceitariam anúncios de motores de busca rivais. “A má conduta durou mais de 10 anos e negou a outras empresas a possibilidade de competir no mérito e inovar”, concluiu o órgão.

Nem sempre foi assim. Para Borer, nos primórdios, a internet era muito mais plural.

– Havia pequenos sites, páginas pessoais, buscadores, nada a ver com o poderio que o Google tem hoje. E não havia as redes sociais, que atraem continuamente as atenções – afirma.

Nesse ambiente, floresceram vários negócios, empresas que encontravam na internet canal eficiente e com proposta de valor e conteúdo que atraíam a audiência. Como os internautas encontravam esses negócios, se não havia Google?

– Pela boa e velha publicidade. Todo mundo fazia campanha. Era um ambiente muito mais democrático, tinha alta competição – diz Borer.

Aí, o Google lançou o serviço de buscador e começou a fazer com que ele ficasse cada vez mais eficiente. Fomos ficando, digamos, mais preguiçosos. Não era mais necessário digitar o endereço de um site lá no alto do navegador, precedido por “www” e seguido por “.com”.

– No início, o Google se propunha a dar resultados sem beneficiar ninguém. Com o passar do tempo, no entanto, links patrocinados começaram a aparecer no topo do resultado das buscas. Ou seja, o buscador não estava mostrando aquilo que era mais útil para o usuário, mas links para empresas que haviam pago por propaganda. O Google foi crescendo, e o modelo de negócio passou a cada vez mais atrair gente para a página inicial e vender publicidade ali – afirma o executivo.

Até 2010, o Google vendia anúncios na primeira página e, depois, esperava que o usuário fosse para o site que estava buscando. Por exemplo, se alguém buscasse notícias sobre o Campeonato Brasileiro, abriria o site de um jornal, de uma emissora de TV ou de uma rádio. De um tempo para cá, a informação começou a figurar na primeira página, do próprio Google.

– É uma vantagem para o usuário. Porém, ao dar a informação na primeira tela, o Google reduz as chances de o usuário clicar nos links que remetem para outros sites, fazendo com que essas empresas percam audiência e, consequentemente, publicidade. Com o passar do tempo, o Google foi dando ele próprio resultados sobre horários de cinema, previsão do tempo, voos, eliminando os concorrentes que sobreviviam investindo na produção desse tipo de informação – ilustra Borer.

Em junho, o Cade decidiu arquivar três processos movidos pelo Buscapé contra o Google, que acusava a companhia de praticar scraping (utilizar conteúdo dos concorrentes nos resultados do seu mecanismos de buscas), privilegiar os próprios serviços nos resultados das pesquisas e outra de publicidade. Em nota, o Google declarou: “Estamos confiantes de que nossos produtos e serviços estão em conformidade com as leis brasileiras e continuaremos colaborando com o órgão”. Há outras duas investigações sobre o Google em trâmite na superintendência-geral do Cade: uma denúncia feita pelo Yelp de que a empresa estaria utilizando de seu poder de mercado para favorecer seu mecanismo de buscas locais e outra sobre conduta anticoncorrencial no caso do Android. Foi por questão semelhante sobre o sistema operacional que a empresa acabou multada na Europa em 4,3 bilhões de euros, a maior punição da história do Google, mas cujo valor representa apenas 14 dias de faturamento da Alphabet, seu controlador. Para a News Media Europe, a empresa considera essas multas como garantia para fazer negócios.

– Eles sabem que os procedimentos legais levam tempo. Colocam em ação um exército de escritórios de advocacia, consultorias e lobistas. Então, quando há uma decisão ou uma multa, o dano já foi cometido e eles já ganharam seus lucros. Cerca de 1,49 bilhão de euros (uma das multas aplicadas ao Google) pode parecer muito, mas é uma fração dos negócios anuais do Google – disse Wijk.

É como se Europa e EUA tivessem despertado tardiamente para o problema. Conforme o ex-conselheiro do Cade Arthur Barrionuevo, as autoridades de defesa da concorrência falharam:

– Não deveriam ter deixado isso acontecer. Elas fizeram uma análise muito tradicional, que não levou em conta as condições do mercado.

Para o pesquisador do Institute for Critical Infrastructure Technology, Parham Eftekhari, a ação não foi tomada até que a opinião pública começasse a mudar, impactada pela proliferação de notícias falsas nas eleições americanas e pelas informações de que dados de milhões de usuários do Facebook foram utilizados sem o consentimento pela Cambridge Analytica para fazer propaganda política.

– As investigações foram impulsionadas, em grande parte, devido à cobertura da mídia tradicional sobre o uso das redes sociais para tentar influenciar as nossas instituições democráticas durante as eleições presidenciais de 2016 – diz Parham.

A discussão é o que fazer agora que essas empresas já dominam o mercado publicitário.

– Quando alguém atinge uma posição quase monopolista, procura-se regular essas empresas. Mas ninguém sabe bem como fazer isso nesse caso – analisa Barrionuevo, que também é professor de Economia da Fundação Getulio Vargas.

Chris Hughes, cofundador do Facebook com Zuckerberg na Universidade de Harvard, hoje afastado da empresa, definiu-a como monopólio e pediu às autoridades que assumam responsabilidades sobre os efeitos causados na sociedade. Em um texto publicado em maio pelo The New York Times, Hughes pede o desmembramento da companhia e a anulação das compras de Instagram e WhatsApp. A ação permitiria que novos competidores surgissem, investidores colocassem dinheiro no mercado e empresas de publicidade tivessem mais alternativas para anunciar. “Mark, sozinho, pode definir como alterar o algoritmo da rede para decidir o que os usuários vão ver em seus feeds de notícias, que configurações de privacidade serão adotadas e que mensagens serão entregues”, escreveu.

*Zerohora